Teresa Garcia

A história da Neurorradiologia do Centro Hospitalar de Coimbra (C.H.C.) é a história de um homem solitário, afável, determinado, exigente, que durante mais de 20 anos lutou pela causa em que acreditava, a de um Serviço de Neurorradiologia à sua imagem, que reflectisse os padrões de exigência que os que com ele privaram lhe reconheciam – Francisco Faria Pais.

Lamentavelmente não pode ser contada na primeira pessoa, dado o seu desaparecimento recente, mas muito do que poderão ler a seguir são palavras suas, excertos da documentação que deixou.

“Quer se queira quer não, a Neurorradiologia como actividade diferenciada e autónoma nasce, em Coimbra, através de uma luta que eu inicio e conduzo sozinho durante muito tempo, sem sequer saber o que a este respeito se passava no nosso País e, muito menos, fora dele. Nela me empenho de corpo e alma e nela arrisco vida profissional, familiar e até a própria saúde”. (Doc. 1)

“Iniciado na especialidade de Neurocirurgia em Dezembro de 1966, no Centro de Neurocirurgia de Coimbra, ainda antes de terminada a licenciatura, cedo me apercebi da minha pouca “garra cirúrgica” e de uma maior sedução por todo um trabalho preliminar de diagnóstico, no qual a Neurorradiologia ocuparia lugar preponderante. O exame do fim do Internato Complementar de Neurocirurgia em Dezembro de 1971 constituiu apenas a entrada numa via da qual poderia facilmente derivar para a Neurorradiologia”. (Doc. 2)

“Era uma Neurorradiologia primitiva, não só na sua execução como na sua interpretação. A angiografia cerebral limitava-se aos territórios carotídeos por punção exclusivamente percutânea (…). A sua leitura não passava duma avaliação igualmente primitiva (…) cuja interpretação não fugia, em muitos casos, ao subjectivismo de cada um (…). O que se passava relativamente ao estudo angiográfico, repetia-se nos outros exames, pelas mesmas razões: precárias condições técnicas e deficiente conhecimento semiológico, a constituírem um ciclo vicioso limitativo da eficácia neurocirúrgica”. (Doc. 3)

“Porque assim pensava e porque assim não pensava o Director daquela Centro, e não estando disposto a ser um mero executante (…) abandonei o Centro de Neurocirurgia de Coimbra em 31 de Dezembro de 1972”. (Doc. 2)

Do Curriculum Vitæ de final da Especialidade de Neurocirurgia (1971) constam 737 procedimentos diagnósticos efectuados, onde dominam as angiografias cerebrais (425) e as mielografias (165), mas também pneumoencefalografias fraccionadas, iodoventriculografias, ventriculografias e ecoencefalografias.

“Modificados determinados condicionalismos (…) proponho-me voltar ao C.H.C., no qual o Centro de Neurocirurgia de Coimbra tinha sido entretanto integrado, proposta aceite a 31/12/1975, com a possibilidade da realização do referido projecto. A primeira etapa teria de ser, pois, a aquisição de uma preparação neurorradiológica que me possibilitasse a execução consciente das etapas seguintes. A escolha do local onde poderia adquirir essa preparação não foi difícil (…). Mais uma vez me dirigi ao Serviço de Neurologia do Hospital de Sto. António (*), desta vez ao Laboratório de Neurorradiologia, onde, ao entusiasmo de quem pretendia humildemente aprender, se juntou o de quem lealmente se sente no dever moral de transmitir o que sabe, numa matéria da qual, sendo verdadeiros pioneiros em Portugal, não querem ser exclusivos detentores”. (Doc. 2). Fez um estágio de 6 meses, completado por um mais curto, em Estrasburgo, com A. Wackenheim.

Na documentação deixada são muitas as referências ao Serviço de Neurologia/Neurorradiologia do Hospital de Sto. António, em particular às pessoas dos Drs. Paulo Mendo e Almeida Pinto, mostrando sempre grande reconhecimento e gratidão. “(…) é com muito orgulho que me sinto um de vós e como tal pretendo continuar a ser”. (Doc. 2)

A primeira vaga de Neurorradiologia é criada no quadro médico do Serviço de Neurologia, onde viria a nascer o Laboratório de Neurorradiologia em 1976.

“Com efeito, é ao Director do Serviço de Neurologia que dirijo a primeira proposta da criação da Especialidade de Neurorradiologia que viria a estar, juntamente com propostas idênticas de outros hospitais centrais, na base da criação da Especialidade de Neurorradiologia a nível hospitalar. Com a criação da Especialidade faço questão de prestar provas públicas para especialista de Neurorradiologia, o que vem a ter lugar em Novembro de 1976. Fui a partir dessa altura, nomeado, oficialmente, Director do Laboratório de Neurorradiologia”. (Doc. 2)

“O Laboratório foi montado exclusivamente com a aparelhagem que estava a ser utilizada no Centro de Neurocirurgia de Coimbra. A este equipamento adaptei uma série de acessórios construídos, sob minha orientação, nas Oficinas do próprio Hospital”.

“Constituo uma pequena equipa com uma Enfermeira, uma Técnica de Radiologia e uma funcionária do Serviço Geral. Com esta equipa asseguro toda a actividade neurorradiológica em quantidade, diversidade e qualidade de exames, que pela primeira vez se aproximavam do que nos outros Serviços congéneres do País se fazia, em condições de trabalho incomparavelmente melhores”. (Doc. 3)

Em 1976 nasce também o Hospital Pediátrico, que integra o C.H.C., alargando-se assim o espectro de assistência do Laboratório. Entre 1976 e 1996 o Dr. Faria Pais é, na região Centro, o único Neurorradiologista dedicado à Neurorradiologia pediátrica. É também sua a primeira RM Fetal realizada no País.

Em Maio de 1982 o Laboratório recebe dois Internos, os Drs. António Gonçalves e Tiago Filho, e entra num novo ciclo, com maior capacidade de resposta, nomeadamente no que respeita ao Serviço de Urgência. Contudo, com a integração no Serviço de Radiologia, que entretanto se dera, e que vai durar doze anos, perde a autonomia, nomeadamente no que respeita ao pessoal paramédico, com consequente perda da qualidade do serviço prestado. Paralelamente, o equipamento, já de si frágil, vai-se tornando cada vez mais obsoleto, com avarias constantes, não tendo resposta os inúmeros apelos e alertas que são enviados ao Conselho de “Gerência”. Assim, em 1985, pressiona os Internos no sentido de concluírem a sua formação com estágios no Hospital de Sto. António ou no Hospital de Egas Moniz. A sua opção vai ser a transferência para o Hospital da Universidade de Coimbra, com inauguração das novas instalações prevista para breve. Embora não satisfeito com a solução, não se opõem. E é assim que em Janeiro de 1986 fica de novo sozinho. “A “alma” que até aí palpitava num Serviço novo, feito de velharias, desvaneceu-se”. (Doc. 3)

Intensifica a luta que visa a aquisição de um equipamento de Angiografia de Subtracção Digital, mas sem sucesso, e em Outubro de 1987 declara o Serviço inoperacional e decide sair do hospital, saída que não se chega a concretizar. Em 1992, pelos mesmos e novos motivos, toma atitude semelhante, com o mesmo desfecho. É nestas alturas que elabora os documentos 1 e 3 citados neste texto, onde justifica os motivos para tais atitudes e anexa a respectiva documentação.

Finalmente, em 1995, é criado o Serviço de Neurorradiologia do C.H.C., como entidade autónoma. Ao quadro médico de um Chefe de Serviço e dois Assistentes Hospitalares (já aprovado há alguns anos), junta-se o pessoal Técnico, Administrativo e Auxiliar próprio.

A Angiografia chega também (finalmente) nesse ano. A TAC tinha sido instalada em 1992.

É assinado um protocolo de colaboração com o I.P.O. que visa a presença de um elemento do Serviço nas reuniões de Decisão Terapêutica de Neurologia e a realização dos exames urgentes daquele hospital.

Inicia-se, a título experimental, com o apoio da Tutela, a Telerradiologia com o Hospital Distrital de Leiria, numa altura em que ainda, praticamente, não se falava de Telemedicina em Portugal. Este protocolo durou até Maio de 2008, sendo substituído pela “nova” Telerradiologia.

Em Novembro de 1995, em carta ao Dr. Paulo Mendo, diz:

“Tu, o Almeida Pinto e o Cruz Maurício tiveram o mérito dos timoneiros, que conhecedores do rumo, conduzem as respectivas naus a bom porto. Tiveram a vosso favor o facto de contarem com boas naus para a época e também com boa tripulação. Eu não tive nem uma coisa, nem outra e, se algum mérito houve, foi o de não perder a esperança de que, em condições idênticas, saberia ter igual desempenho. Parto agora com a nau que me ajudaste a construir, vinte anos mais velho, mas com o mesmo entusiasmo de então. O resto da tripulação, ou seja, o quadro médico, está um pouco mais difícil de conseguir. O primeiro, que aliás é uma, já concorreu e deverá tomar posse no início do ano(…)”

E é aqui que eu entro na história. E quase em simultâneo entram dois Internos. E vão entrando mais Especialistas e mais Internos.

Quando em Setembro de 2012 o Serviço se extingue, fruto da reorganização hospitalar, passando a integrar o Sector de Neurorradiologia do Serviço de Imagem Médica do C.H.U.C., éramos seis Especialistas e quatro Internos. Assegurávamos toda a actividade assistencial do Hospital dos Covões e do Hospital Pediátrico, dois hospitais centrais com todas as valências médicas e cirúrgicas utentes da Neurorradiologia. Assegurávamos ainda o Hospital Psiquiátrico Sobral Cid. O trabalho era muito e a patologia diversificada.

Vestíamos orgulhosamente a nossa “camisola”.

Teresa Garcia

Assistente de Neurorradiologia do C.H.C. desde Fevereiro de 1996.

Directora do Serviço entre 2001 e 2010.

Doc. 1 – Dossier de Neurorradiologia (1992)

Doc. 2 – Relatório de Estágio no H. de Sto. António (1976)

Doc. 3 – Ofício à Direcção Clínica (1987)

(*) Em 1973 efectuou um estágio de 6 meses em EEG no Hospital de Sto. António.