J. Cruz Maurício
Radiologista (IPOFG) e Ex-neurorradiologista (HEM). Professor com Agregação da Faculdade de Ciências Médicas da UNL Professor Catedrático de Imagiologia da UBI.

Quando se tece um discurso formatado em historial para divulgação inter pares deve-se referir de início a intenção e a circunstância da matéria versada.

A intenção, de imediato, é transmitir uma saudação à NR, enquanto especialidade personificada e independente, aproveitando os 40 anos de existência e os 25 de integração colegial na Ordem dos Médicos. De seguida, a circunstância…

tiro de partida em 1979-1980.

Dois episódios foram relevantes para serem mencionados: a criação do NPNR, embrião da futura Sociedade; o concurso público dos 3 primeiros Chefes de Serviço de NR – Porto, Lisboa, Coimbra – a quem foram atribuídos 20 valores: o meu (HEM), o de Almeida Pinto (HSA), o de Faria Pais (CHC).

Para atingir o primeiro desiderato, o local escolhido foi o HSA. Haveria reunião, seguida de frugal almoço de trabalho, servido no local, precedido por foto recordatória (14 elementos presentes, todos sentados na escadaria do jardim) e depois regresso a casa. Eis o programa agendado para esse sábado.

Tinha-se por propósito agrupar aqueles que, nos hospitais, já praticavam uma protegida radiologia do sistema nervoso, cuja carreira se iniciara pela Neurocirurgia, pela Neurologia ou ainda pela Radiologia. O HSA detinha a dianteira com 3 médicos a laborar (1 deles já neurologista); Lisboa tinha outros 3 (1 deles já radiologista e 2 outros apenas voluntários); Coimbra tinha 2, não existindo especialista. Poder-se-á inferir que o HSA estava bem à frente. Tendo arrancado mais cedo, já em mar largo sulcava. Que belo exemplo para mostrar, e demonstrar, o roteiro aos que também ambicionavam navegar.

A descrição agora encetada, vem revelar o caminho que houvera de se percorrer até aqui. Mas teria sido um caminho sinuoso, ou o natural prosseguimento para findar o que se começara? A resposta à segunda questão parece-nos mais formal, embora sem excluir de todo algumas dificuldades de percurso tidas por naturais.

Nunca houve recuos nem hesitações. Manteve-se sempre a mesma vontade de progredir, motivada pela ambição de integrar um grupo autónomo, interventivo, detentor de um contributo talvez marcante. Era aliciante para um jovem médico ver o seu trabalho expandir-se, norteado pelo estudo e pela entrega. Note-se que estava em jogo o diagnóstico, o prognóstico e também a terapêutica depois designada por intravascular. E tudo isto em simultâneo, para testar e provocar a força dos candidatos.

Foi o ideário abrangente de Corino de Andrade, Homem de cultura, criativo, decidido, que motivaram entre nós o surgir da NR. Corino abordou a questão grupal da NR, geriu a criação, programou-a. Porque homem do sul e do sol, expõe o seu imaginário quanto às artes, em geral, e à medicina, em particular.

… a opção pela Imagem Clínica revelou-se assim deveras atrativa.

Cá por baixo, nunca raiou um gesto tão esclarecido como o de Corino de Andrade. Mas desde há muito que se sentia a necessidade de uma nova radiologia orientada para as ciências neurológicas. Porém nunca passou de “boca pequena”…

Tal desiderato, em Lisboa, era desejado e claramente manifestado por Cunha e Sá (Neurocirurgia), por Orlando Leitão e por Ermelinda Santos Silva (Neurologia), todos graduados dos HCL. Esta foi a grande curiosidade que frutificou.

Foram eles que anteviram e criaram as bases de uma NR com fundamento radiológico, forjada no IPOFG, ainda como Radiologia, e logo continuada no HEM já como NR. Porquê o IPO? Porque Silvio Rebelo, que dirigia o Serviço de Radiologia também era sensível e acessível à inovação.

Dois momentos da NR no IPOFG. O primitivo cavalo de pau concebido para a encefalografia gasosa. Na parede do fundo exemplifica-se a sucessão dos passos da flebografia orbitária. Ao lado está o moderno angiógrafo para exames de cateterismo arterial à distância.

Todavia, a NR recém-nascida carecia de suporte para se manter e crescer. Que fazer?

O recurso mais óbvio seria recorrer-se à NR fundada por Paulo Mendo, no HSA, que era reconhecida pelo exercício em exclusividade hospitalar. Foi na companhia de Almeida Pinto que ensaiamos os passos decisivos, até outro rumo surgir. Estabeleceu-se com ele uma marcante relação profissional, que passou pelo doutoramento no qual foi o arguente principal.

Eis os principais quesitos que consolidaram a nossa pretensão. Primeiro, Palhavã e Junqueira, depois Porto e Paris.

O percurso no IPOFG e no HEM foram decisivos para o lançamento da NR, em geral, mas também da neuro-oftalmologia e da oto-radiologia, em particular. Sylvio Rebelo, Moradas Ferreira, Elmano Vendrell, Pedro Abrantes. Vasco Chichoro, Cunha e Sá, Orlando Leitão, Luís Sobrinho foram, por ordem cronológica, os principais obreiros desta abertura.

Na fase de maturação, muito devemos a J. Vignaud do Hospital Rothshild (Paris), por nos ter recebido no seu Serviço e conduzido à Sociedade Europeia de Neurorradiologia, depois do convite para apresentar, como principal autor, uma comunicação sobre a temática do VI Congresso (Dijon, 1976), em representação do seu Serviço.

É também em Paris que, face aos conhecimentos do técnico-coordenador G. Korach, renasce o interesse pela radiologia do ouvido na plenitude técnica e semiótica. No percurso mediado entre 1975-95, registaram 12 comunicações e 9 publicações sobre oto-radiologia, além de um Prémio Pfizer da Sociedade de Ciências Médicas, 15 anos consecutivos de aulas teóricas da disciplina  de ORL, 5 Cursos de Disseção do osso temporal.

Três casos de anomalias de desenvolvimento petro-lairíntico e da mastoideia. Acufenos. TC de alta resolução nos planos axial (A), coronal (B) e Poschl (C). OE. Em A existe deiscência hipotimpânica do golfo jugular (seta). Em B existe deiscência da parede de separação carótida-coclear (seta). Em C existe deiscência da cúpula do canal semicircular superior (seta).

Tais indicadores poderão talvez prenunciar uma escola na área da radiologia geral – a otorradiologia? Será possível, desde que uma pitada de presunção se junte com a água benta…

Ao ampliar-se o retrato, e adicionar-lhe a relação da NR com o HEM, fácil será encontrar na biografia a presença, durante as décadas de 80 e 90, de Augusto Goulão e Jorge Campos, com pontos de partida diferentes – HEM e HDB – mas com chegada comum: ambos se doutoraram. O primeiro pela FCM da UNL, o segundo pela FML. Os principais arguentes foram P. Lasjaunias (Paris) e F. Viñuela (USA), ambos radiologistas e NR. As classificações foram as mais elevadas.

Não há rosas sem espinhos. Sentia-se a natural presença da Radiologia que, para sustentar uma opinião não acordante, apelava à unidade de várias subespecialidades. Seria uma opinião legítima, mas desenquadrada da verdadeira matriz. Não vingou.

Uma nota final para felicitar a NR nada e criada no HEM. Fortes os seus pilares: Eduardo Medina, Augusto Goulão, Constança Chaveiro, Júlia Duarte, Pedro Evangelista, Jorge Canas, Gabriel Branco, Carlos Morgado, Arceles Fernandes, Luísa Biscoito e outros que deixaram curricula de prestígio e valor. Neste período teve-se o ensejo de lidar com a encefalografia gasosa, com a mielografia e a radiculografia, com a tomografia de movimento complexo, com a flebografia orbitária, com a angiografia diagnóstica e de intervenção, fosse esta última por injeção de partículas sólidas, polímeros, balões, coils, stents.

Exoftalmia axial progressiva, unilateral, não pulsátil. Flebografia orbitária. Punção transcutânea frontal. Frente. Alargamento do quadrilátero venoso (asterisco) por lesão expansiva intracónica. Diagnóstico operatório – glioma do nervo ótico

Angiofibroma juvenil. Tentativa de intervenção cirúrgica com copiosa hemorragia, Cateterismo seletivo da artéria faríngea ascendente (seta). Antes (A) e após (B) embolização com dura. Redução do leito arteriolar tumoral. Cirurgia conseguida.

Nesta fase da intervenção, por fadiga e por inépcia retirei-me do projeto audacioso que entusiasmava Gabriel Branco e viria a entusiasmar Luísa Biscoito. Tinha já passado 40 anos para lá da minha primeira angiografia. Outros valores aguardavam e menos esforçados eram.

Falar da Ressonância Magnética e ligá-la diretamente com o HEM seria estulto. Mas valerá a pena recordar que a primeira RM de 1,5 T instalada em Lisboa, em regime privado, brotou do espírito coletivo dos NR do HEM, encabeçado por Eduardo Medina e por mim. No estatuto da Sociedade Comercial titulada por “RM-Diagnóstico e Investigação” e sediada no Bairro de Caselas (ao Restelo) consta, por objetivo, o “diagnóstico e investigação”, que testemunham a teimosia da nossa caminhada comum. Foi em 1989 e 1990 que se inauguraram os Cursos de Aplicação à Clínica da Ressonância Magnética, dirigidos por mim e por Eduardo Medina. Foram Presidentes de Honra o Professor de Radiologia Vilaça Ramos da Faculdade de Medicina de Coimbra e o Professor de Neurologia Lobo Antunes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Os Cursos tiveram o patrocínio da Faculdade de Medicina de Lisboa, da Faculdade de Ciências Médicas da UNL, da Sociedades Portuguesas de Radiologia e Medicina Nuclear. No último  publicou-se um breve currículo académico escrito pelo punho do Professor Lobo Antunes (à data colaborador de Egas Moniz) com a sua caricatura… já com cachimbo e olhar perscrutador. For reproduzida do Livro de Curso.

Para acabar este relato en passant na 1ª pessoa, pois nem sempre se pôde separar o narrado do narrador, concluiremos: que a NR em Lisboa, no HEM, teve um nascimento não fácil, porém com a virtude de ser criada por vontade da clínica sob matriz pluridisciplinar; porque os seus ilustres patronos* decerto nunca perdoariam um desvio personalístico, o Serviço logo optou pelo trabalho em tempo exclusivo; que em todos os domínios de atividade se comunicaram ou publicaram trabalhos científicos que agruparam Colegas de várias Especialidades clínicas e com vários níveis de carreira; que se participou no ensino pré e pós-graduado da Radiologia, da Neuro-cirurgia, da Neurologia, da ORL e da Endocrinologia; que a sua atividade inicial foi a neuro-oftalmologia e a oto-radiologia. No entrosar com a ORL, cuidaram-se dos pergaminhos de Rui Penha, de Samuel Ruah, de Nobre Leitão, de Rosas da Costa, de Lídio do Amaral, de Borges de Sena, e de outros Diretores de Serviço em Lisboa, Porto e Coimbra, cito como exemplo Diogo de Paiva, com os quais foi importante a relação profissional

Estes “aconteceres” que também integram os Prémios da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, atribuídos à NR do HEM, serão o tributo da memória que nunca se quererá apagada nem adormecida, pelo contrário livre e atuante.

Saúda-se José Almeida Pinto (HSA, Porto). Lamenta-se o desaparecimento de J. Vignaud e G. Korach (H. Rotschild, Paris), de Cunha e Sá e de Orlando Leitão. Recorda-se assim a “frente da batalha” que animou a NR do HEM, envolvendo-a no aniversário da Sociedade que pretendo aqui afirmar.

.* Na modéstia que esta recordação exige ascendem os nomes de Egas Moniz, de Almeida Lima, de Pereira Caldas (e seu “carrocel”), de Hernani Monteiro, de Roberto de Carvalho, de Sousa Pereira, de Cid dos Santos, e pouco mais tarde de Ayres de Sousa (pela ordem que a memória ainda retém), os eminentes  fundadores da Escola Portuguesa de Angiografia.

Castelo de Vide, Quinta do Barrieiro, 2020

Siglas por ordem de aparecimento no texto – NR – neurorradiologia; NPNR – Núcleo Português de neurorradiologia; HEM – Hospital de Egas Moniz; HSA – Hospital de Stº António; CHC – Centro Hospitalar de Coimbra; IPOFG – Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil; HB – Hospital Distrital de Beja; SPNR – Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia