A Otorradiologia entre nós. Um breve apontamento para o XVI Congresso da SPNR.

Cruz Maurício. Ex-Radiologista do IPOFG (Lisboa); Ex-Neurorradiologista do HEM.

Professor Auxiliar com Agregação da Fac Cienc Méd da UNL

A Otorradiologia entre nós tem cerca de 40 anos de vida hospitalar e 30 de exercício privado. A primeira publicação em Revista nacional foi em 1981 no “Médico”. Teve como principais protagonistas os Internos de Radiologia a estagiar na recém-criada Especialidade de Neurorradiologia: Barbosa Neves, Jorge Campos e Filomena Lima, dos HCL e do Hospital de Beja. Eram seus Diretores de Serviço: Américo Prates, Martins Pisco e Covas de Lima. O tema, “Tumores benignos do ouvido médio”.
A relação da Radiologia com a Neurorradiologia teve aqui o seu despertar.
Em termos genéricos, a radiologia do ouvido ensaiou os primeiros passos para responder a uma questão topográfica elementar, ou seja, como utilizar as “janelas” da base craniana que acedessem, com a mínima interferência à radiação X, ao osso mais denso do crânio – o rochedo? As “janelas” escolhidas por Guillén, Chaussé, Schüller e Stenvers foram a órbita e a fossa temporal.
O passo seguinte seria anatómico: como utilizar o ponto de entrada da radiação que intercetaria na tangencial a estrutura petrosa a estudar? Pela aplicação de incidências que seriam trans-orbitárias ou laterais, quase sempre combinadas em função do objetivável. Surge assim a especificidade desta radiologia que possuí uma orientação precisa para cada fim distinto.
A fase heroica da radiologia simples do ouvido teve, entre nós como principal protagonista, Martins da Silva, Diretor do Serviço de Radiologia do Hospital de Dona Estefânia e ativo Presidente da SPRMN. A abertura da Otorradiologia, sob o signo da politomografia, inicia-se com o VI Congresso Internacional de Radiologia em ORL, 1973, presidido por Manuel Trujillo em Santiago de Compostela. Estavam presentes Paulo Mendo e Almeida Pinto, que exerciam neurorradiologia no Hospital de Stº António, e eu, radiologista do IPOFG. Mais tarde, sempre com o mesmo entusiasmo, um lento Morris-Marina dirige-se em 2 dias para Barcelona, para participar no Curso Internacional de Otorradiologia presidido por Carmen Guirado. Comigo segue Constança Ribeiro, recém-interna de Neurorradiologia.
Lá por fora, os mais destacados titulares da aplicação e divulgação da “politomo” foram J. Vignaud, do Hospital Röthschild, em Paris, e G. L. Valvasori, em Ilinois, USA. Vignaud exerceu grande influência na Neurorradiologia e na Otorradiologia portuguesas, a par de Gabriel Korach seu Técnico principal e companheiro de raiz. Neste mesmo contexto histórico evoca-se ainda F. Fishgold, um dos radiologistas fundadores da neurorradiologia e da otorradiologia europeias.
A evolução da ORL cedo exige que a Otorradiologia demonstre os focos de otospongiose (ativos) com dimensão <2mm. e que a relação rádio-clínica ultrapasse os 8-10% de falsos-resultados (negativos ou positivos), tendo importância para a estapedectomia.
A integração da TC para estudo do ouvido, após atingir a resolução inframilimétrica e a capacidade de reconstrução multiplanar (década de 80) e depois volumétrica (“reformat plane”), ganha a mais explosiva aplicação imagiógica jamais alcançada. É agora possível reconstruir, sem perda de detalhe, as variadas projeções clássicas (“incidências”) cuja importância anátomo-clínica se tinha, entretanto, esvanecido.

TC de alta resolução. Doente com acufenos não esclarecidos pela clínica. Aquisição reformatada no plano frontal (A) e em Pöschl (B). Em A existe deiscência da espira da cóclea (seta). Em B existe deiscência do canal semicircular superior (seta).

Mas, afinal, este lembrete para quê? Para reafirmar a matriz da nossa Otorradiologia que tem fundamento técnico, anatómico e clínico. A sua autonomia académica fora já reconhecida pela Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa (Prémio Pfizer, 1983) e pela Faculdade de Medicina da UNL (Tese Doutoral 1997, Agregação 2003).

TC de alta resolução. Doente com vertigens pós-estadectomia. Reconstrução em Pöschl (A) e Stenvers (B). As setas referenciam a ponta do pistão de titânio na janela oval, discretamente afundado.

Perante a temática deste XVI Congresso da SPNR, em pleno se justifica a abordagem histórica da Otorradiologia com futuro absoluto na crença e vontade dos neurorradiologistas que seja subespecialidade, valência ou “lobbying”. Eis o desafio!
Parece-me deveras importante manter e reforçar a autonomia da nossa Especialidade-mãe no contexto de uma designação mais abrangente e ainda mais atrativa.

Lisboa, 5 de outubro, 2021