Inês Carreiro

É incontornável lembrar o Dr. Sousa Fernandes quando se fala da Neurorradiologia em Portugal. Ele foi, com outros, um pioneiro do aparecimento e consolidação da disciplina e da especialidade de Neurorradiologia no nosso país. Visitar o curriculum de Sousa Fernandes permite perceber o valor que dava às causas e a paixão que sempre envolveu o seu percurso como médico, pondo ao serviço dos outros o conhecimento.

As causas que abraçou enquanto estudante mostravam já uma inquietude notável, com uma convicta preocupação na valorização dos estudantes e dos profissionais da saúde, bem como da academia, não deixando de se voluntariar para poder servir a comunidade e prestar serviços de saúde a quem tinha dificuldades de acesso. Esta é aliás uma característica que atravessa toda a sua vida como médico, o poder servir e disponibilizar-se para os outros, colocando-se na maior parte das vezes do lado mais difícil. O seu interesse por ensinar acompanhou-o durante a sua vida como médico, expressa na vontade de partilhar, como pedagogo, o conhecimento e de influenciar os jovens estudantes, quer em termos académicos e profissionais, quer como pessoas. Comportamento que deve ser sinalizado na docência como Assistente da Faculdade de Medicina da Cadeira de Medicina Legal e Toxicologia Forense, tendo ministrado aulas teóricas, práticas e teórico-práticas, e tendo participado em vários cursos de formação.

Destaco, entre muitas das suas atitudes empreendedoras, o seu trabalho como Diretor Clínico dos Serviços de Medicina Universitária de Coimbra, porque constitui um referencial na saúde Escolar.

É durante o seu internato complementar de Neurologia, com início em janeiro de 1972 no Serviço de Neurologia dos HUC, que toma contacto e desenvolve o gosto pelas técnicas neurorradiológicas que já vinham sendo praticadas desde meados dos anos 60. Consistiam em exames de RX simples do crânio e coluna, mielografias e radiculografias, exames de angiografia cerebral, encefalografias gasosas, cisternografias e ventriculografias. É a partir desta experiência, que em 1974, parte para o Hospital de S. António do Porto, onde existia um centro pioneiro de referência, o Laboratório de Neurorradiologia, para aí fazer um estágio, que mais o capacitou e motivou, e que permitiu nesse ano, realizar praticamente toda a sua atividade hospitalar orientada para a Neurorradiologia.

Faz exame final de internato em Neurologia em finais de 1974, já com diferenciação em Neurorradiologia, tendo passado em 1975 a médico especialista eventual do quadro dos HUC colocado no sector de Neurorradiologia, com aprovação em concurso para médico técnico de Neurologia/Neurorradiologia. Dava-se assim o arranque da Neurorradiologia nos HUC. Nesse mesmo ano obtém o grau de especialista de Neurologia pela Ordem dos Médicos.

Após obter o grau de especialista em Neurologia e como responsável técnico no sector de Neurorradiologia inicia a sua “viagem” para a consolidação do serviço de Neurorradiologia no HUC, onde percorre um caminho difícil e desgastante, onde muitos não viam saída, mas Sousa Fernandes  consciente da necessidade de autonomia do setor e da sua matriz em estreita ligação às ciências neurológicas, com resiliência e visão de modernidade, enfrentou esse desafio e estabeleceu as pontes e parcerias certas para afirmar uma disciplina que se consolidou e se transformou na especialidade atual de Neurorradiologia. Este comportamento irrequieto, que agora podemos considerar como correto, nem sempre teve o melhor entendimento entre os pares, contudo, mais do que uma afirmação pessoal, foi o necessário para a afirmação da Neurorradiologia como a entendemos hoje. Este percurso, muitas vezes solitário e mal compreendido, traduz um esforço de obtenção de competências aceites no contexto nacional e internacional, de adequação dos meios e dos equipamentos necessários, do estabelecimento de consensos e da construção de um curriculum robusto. Hoje a especialidade de Neurorradiologia em Portugal está consolidada, facto indiscutível, e muito lhe deve, porque ele lutou por isso, em conjunto com os outros pioneiros.

Foi membro de inúmeras sociedades e núcleos científicos, tendo participado de forma ativa, quer contribuindo em apresentações científicas (relatórios, palestras, comunicações e publicações) quer como elemento distinto e determinante dos seus órgãos sociais. Destaco entre vários, a Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria, a Sociedade Brasileira de Neurorradiologia (como membro estrangeiro), a Sociedade Portuguesa de Radiologia e Medicina Nuclear onde foi membro da direção da secção de Neurorradiologia, e a comissão da Especialidade de Neurologia da Ordem dos Médicos até à constituição do Colégio da Especialidade.

Destaco com particular apreço o ter sido em 1980 um dos fundadores do Núcleo Português de Neurorradiologia (NPNR), um pequeno grupo de trabalho que reunia os vários médicos especialistas oriundos das áreas de neurologia, neurocirurgia e radiologia já dedicados à Neurorradiologia nos respetivos hospitais e com trabalho muito reconhecido pelos seus pares. Para além da discussão e partilha de conhecimentos relativos à especialidade, esse grupo foi responsável pela elaboração dos parâmetros de formação curricular, carreira e critérios de avaliação em Neurorradiologia, culminando em 1981, fruto desse trabalho coletivo, com a criação formal da especialidade hospitalar de Neurorradiologia. Esse núcleo foi o embrião da atual Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia Diagnóstica e Terapêutica (SPNR).

Apartir da década de 80, a par da criação dos vários serviços de Neurorradiologia nos hospitais centrais do país, e com o aparecimento da Tomografia Axial Computorizada (TAC) associado ao posterior aparecimento da Ressonância Magnética (meados de 80 e anos 90) e à evolução no sentido Digital da clássica Angiografia, passando a Angiografia por Subtração Digital (DSA), surge um interesse crescente e mais difundido pelas técnicas neurorradiológicas em virtude do seu enorme potencial diagnóstico e possibilidades terapêuticas, aliado ao aumento exponencial dos fluxos de trabalho que proporcionavam em termos hospitalares, o que gerou um aumento da oferta e também da procura da especialidade de Neurorradiologia por parte dos jovens médicos quando da escolha das suas carreiras de especialidade.

A capacidade de realização, o seu lado pioneiro e empreendedor são também realçados pelo facto de Sousa Fernandes ter sido sócio fundador da DIATON em 21 de janeiro de 1980, um centro privado de realização de exames auxiliares de diagnóstico médico na área da Imagiologia com sede em Coimbra (Tomografia Axial Computorizada – TAC, Ressonância Magnética, Densitometria Óssea e Medicina Nuclear), pois foi das primeiras empresas privadas a abrir as portas neste sector em Portugal, antes até dos HUC disporem de equipamentos de TAC.

Em 1989 e anos seguintes Sousa Fernandes fez parte dos grupos de trabalho para a criação do Colégio da Especialidade de Neurorradiologia da Ordem dos Médicos e para a elaboração do respetivo Curriculum da Especialidade. Foi nesses anos e até 2000 membro eleito da direção do Colégio da Especialidade de Neurorradiologia da Ordem dos Médicos, tendo sido presidente do Colégio em 1996.

Em 1990, e já com uma massa crítica significativa de neurorradiologistas em Portugal, é constituída a Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia – SPNR, da qual Sousa Fernandes faz parte integrante dos seus órgãos sociais, tendo sido eleito como presidente da Assembleia Geral da primeira direção da SPNR.

Se olharmos para as datas marcantes da evolução da especialidade em Portugal percebemos que o contributo de Sousa Fernandes é indelével, mesmo fundamental, tendo sido por isso reconhecido com a atribuição do prémio Egas Moniz em 2015, a título póstumo, por ocasião do 25º Aniversário da SPNR durante o Congresso Nacional em Aveiro e na presença dos representantes das mais relevantes instituições da Neurorradiologia internacional. O prémio Egas Moniz é um prémio bienal de Neurorradiologia, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia em conjunto com a Casa Museu Egas Moniz e a Ordem dos Médicos, que visa premiar personalidades que se tenham destacado pelo seu contributo no desenvolvimento da Neurorradiologia em Portugal, em honra do Professor Egas Moniz, que pioneiro no mundo, inventou em 1927 a técnica de Angiografia Cerebral, considerada a primeira técnica verdadeiramente neurorradiológica, e que ainda hoje é uma das técnicas privilegiadas na abordagem diagnóstica e terapêutica do Sistema Nervoso Central.

A viagem do Dr. Sousa Fernandes pela vida foi abruptamente interrompida em 2000, terá sido uma viagem incompleta, tendo em conta o que sempre tinha como desafiante para oferecer, mas, e parafraseando o nosso Chefe, “na certeza, porém de que” temos como certo que esta sua viagem proporcionou também muitas das nossas viagens e outras tantas que ainda estarão por iniciar…

 

Ao Dr. Sousa Fernandes deixo o meu agradecimento muito especial, agradecimento que é acompanhado por todos os colegas de Neurorradiologia do Serviço que construiu nos HUC, hoje dos CHUC.

 

Inês Carreiro

Neurorradiologista dos CHUC

27/07/2020